29/07/2007

A UMA PRINCESA DESCONHECIDA
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Para que ela tivesse um pescoço tão fino
Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
Servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Ávidos cruéis e fraudulentos.
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Foi um imenso desperdiçar de gente
Para que ela fosse aquela perfeição!

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Sophia de Mello Breyner Andresen

09/06/2007

INSTANTES

QUE FAZER?

Para onde partiram os amigos, os amantes, os abraços de carinho, os risos?
Para onde foram os sonhos, todas as promessas depositadas no nosso colo quando éramos tão inocentes, as esperanças adoçadas nos anos verdes pelas histórias mágicas dos príncipes encantados do “para sempre felizes”? Onde ficaram as noites mágicas de palavras sussurradas ao ouvido, com um céu estrelado e o algodão doce da feira, as rifas, as farturas que lambuzavam os dedos e derretiam o coração? Por que caminhos ínvios, negros e dispersos nos perdemos todos, como se hoje estivéssemos aqui numa terra desconhecida, rodeados de gente desconhecida, sem raízes, sem memórias?
As esperanças rasgadas e deitadas ao vento e o vento leva as palavras para terras onde ninguém as entende e, por isso, estamos rodeados deste silêncio ensurdecedor.
Percorremos os dias repetindo os gestos, mas, quando deitamos a cabeça na almofada, a dor no corpo tolhe-nos, a solidão tem cheiro e peso e nada nos vale, nem quando outro corpo dorme a nosso lado.
Que fazer com o resto dos dias, com o resto das ilusões manchadas de rugas, de desilusões, da longínqua recordação do que um dia foi?
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(Luísa Castel-Branco, apresentadora de televisão e escritora)
Fotografia de Pé de Salsa

18/05/2007

OFERTA



HOJE, DE PREFERÊNCIA, SÓ MESMO ROSAS.
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MUITAS ROSAS DE TODAS AS CORES.



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A beleza ideal está na simplicidade calma e serena
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Disse Johann Goethe e eu estou plenamente de acordo.
Fotografias de Pé de Salsa

09/02/2007



Carminho & Sandra


Carminho senta-se nos bancos almofadados do BMW da mãe. Chove lá fora. Encosta o nariz ao vidro para disfarçar duas enormes lágrimas que lhe rolam pela face. A mãe conduz o carro e aperta-lhe ternamente a mão. Há muito trânsito na Lapa ao fim da tarde. A mãe tem um olhar triste e vago mas aperta com força a mão da filha de 18 anos. Estão juntas. A caminho de Espanha.

(Mais abaixo na cidade)

Sandra senta-se no banco côr-de-laranja do autocarro 22 que sai de Alcântara. Chove lá fora. Encosta o nariz ao vidro para disfarçar duas enormes lágrimas que lhe rolam pela face. A mãe está sentada ao lado dela. Encosta o guarda-chuva aos pés gelados e aperta-lhe ternamente a mão. Há muito trânsito em Alcântara ao fim da tarde. A mãe tem um olhar triste e vago mas aperta com força a mão da filha de 18 anos. Estão juntas. A caminho de casa de Uma Senhora.

O BMW e o autocarro 22 cruzam - se a subir a Avenida Infante Santo.
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Carminho despe-se a tremer sem nunca conseguir estancar o choro. Veste uma bata verde. Deita - se numa marquesa. É atendida por uma médica que lhe entoa palavras doces ao ouvido, enquanto lhe afaga o cabelo. Carminho sente-se a adormecer depois de respirar mais fundo o cheiro que a máscara exala. Chora enquanto dorme.

Sandra não se despe e treme muito sem conseguir estancar o choro. Nervosa, brinca com as tranças que a mãe lhe fez de manhã na tentativa de lhe recuperar a infância. A Senhora chega. A mãe entrega um envelope à Senhora. A Senhora abre-o e resmunga qualquer coisa. É altura de beber um liquido verde de sabor muito ácido. O copo está sujo, pensa Sandra. Sente-se doente e sabe que vai adormecer. Chora enquanto dorme.

Carminho acorda do seu sono induzido. Tem a mãe e a médica ao seu lado. Não sente dores no corpo mas as lágrimas não param de lhe correr cara abaixo. Sai da clínica de rosto destapado. Sabe-lhe bem o ar fresco da manhã. É tempo de regressar a casa. Quando a placa da União Europeia surge na estrada a dizer PORTUGAL, Carminho chora convulsivamente.

Sandra não acorda. E não acorda. E não acorda. A mãe geme baixinho desesperada ao seu lado. Pede à Senhora para chamar uma ambulância. A Senhora não deixa, ponha-se daqui para fora com a miúda, há uma cabine lá em baixo, livre-se de dizer a alguém que eu existo.
A mãe arrasta a Sandra inanimada escada a baixo. Um vizinho cansado, chama o 112 e a polícia.
Sandra acorda no quarto 122 dias depois. As lágrimas cara abaixo. Não poderás ter mais filhos, Sandra, disse-lhe uma médica, emocionada.
Sai do hospital de cara tapada, coberta por um lenço. Não sente o ar fresco da manhã. No bolso junto ao útero magoado, a intimação para se apresentar a um tribunal do seu país: Portugal.
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Eu voto SIM. Pela Sandra e pela Carminho. Pelas suas mães e avós. Por mim.

Rita Ferro Rodrigues



Porque quero ajudar a salvar mais vidas...
Pela VIDA digna das crianças e das mulheres do meu País...
Contra a hipocrisia...
Eu também... Voto SIM!